O Antoniano

Santa Fé Católica, Santo Antônio de Lisboa, sã filosofia et alia

O sermão pregado não segue o texto abaixo ao pé da letra.

Sermão para o I Domingo da Paixão
Pe. Marcos Vinícius Mattke, IBP

Brasília-DF, 06 de abril de 2025 A.D.

Caríssimos fiéis, 

Se quisermos verdadeiramente compreender o mistério próprio deste domingo, façamos primeiramente uma recapitulação dos domingos precedentes na economia da salvação.

Há sete semanas iniciava-se o Tempo da Septuagésima, pois estávamos a setenta dias da grande solenidade da Páscoa. Durante este período, a Sagrada Liturgia já se revestia dos paramentos roxos e omitia prudentemente o Glória da Santa Missa e o Aleluia de todos os ofícios, o que perdurará até a gloriosa Vigília Pascal. Embora não estivéssemos ainda formalmente num Tempo de penitência rigorosa, era já um tempo propício para adquirir o espírito de compunção, visto que a Septuagésima procura imprimir em nossas almas a consciência viva do pecado e a necessidade urgente da conversão. A Septuagésima, portanto, constitui a preparação remota à Páscoa.

Em seguida, há quatro semanas, iniciava-se o Tempo da Santa Quaresma, quando a Liturgia assumiu um aspecto verdadeiramente austero, pela supressão total do órgão e dos instrumentos, pelo desaparecimento das flores e das relíquias do altar e pela multiplicação de ritos penitenciais durante os ofícios sagrados — como, por exemplo, a “oração sobre o povo”, após a pós-Comunhão nas Missas feriais, durante a qual os fiéis se mantêm piedosamente ajoelhados e profundamente inclinados. A Quaresma é, portanto, um Tempo de penitência e a preparação próxima da Páscoa.

Hoje, porém, já não estamos propriamente na Quaresma, pois adentramos na preparação imediata da Páscoa, que é o sacratíssimo Tempo da Paixão. É imperioso compreender que quanto mais próximos estamos do augusto Mistério da Morte de Nosso Senhor, mais a austeridade da Liturgia se transforma em verdadeiro luto. Com efeito, a Quaresma nos obrigou à penitência porque pôs diante dos nossos olhos os nossos pecados; o Tempo da Paixão, por sua vez, obriga-nos a uma penitência ainda mais intensa, porque põe diante dos nossos olhos a conspiração infame dos fariseus para conduzir à Morte o divino Cordeiro de Deus. Em face deste mistério de iniquidade, todos os deleites deste mundo transitório se convertem em amargura, todas as alegrias se reduzem em tristeza, porque nos vêm ao espírito aquele profundo pensamento de São Francisco de Assis: “o Amor não é amado”.

De fato, ainda ontem no Santo Evangelho da Missa, ouvimos Nosso Senhor dizer aos fariseus: “Eu sou a luz do mundo; aquele que me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida.” (Jo. VIII, 12) Eles, porém, não podendo suportar a pregação da verdade e os milagres operados pelo Cristo, especialmente a ressurreição de Lázaro — cujo Evangelho foi proclamado na última sexta-feira —, pegam em pedras para apedrejá-Lo, e ouvimos há pouco que, por causa disto, Nosso Senhor teve que Se ocultar e sair do Templo (cf. Jo VIII, 59). Os fariseus odiaram a Luz de Cristo, e o Cristo Se eclipsou, ocultando-Se dos Seus perseguidores. Doravante, ouviremos o Último Evangelho da Missa com maior compunção, porque não esqueceremos de qual ódio o evangelista faz referência ao dizer: “[O Verbo] era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem. […] Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam.” (Jo. I, 9; 11)

E já que os pérfidos judeus não receberam Nosso Senhor mas, antes, em sua maquinação deicida, quiseram condená-Lo à morte, obrigando a Luz do mundo a Se eclipsar, eis que hoje encontramos a Cruz do altar velada por um pano roxo. A Cruz do altar coberta representa o Cristo que foge dos Seus perseguidores e simboliza o luto profundo da Igreja face à humilhação do Seu divino Esposo. “Velaverunt faciem ejus”, “cobriram o seu rosto”, diz-nos a Escritura. Além da Cruz, observamos que também as imagens dos Santos foram cobertas, pois se a própria luz de Cristo é eclipsada, não convém aos Santos que a sua glória fique descoberta.

Na Liturgia propriamente, o luto da Igreja se verifica pela supressão do Salmo XLII das orações ao pé do altar, o que, fora do tempo da paixão, só ocorre nas Missas dos defuntos. O Salmo XLII é omitido, e isto, vale a pena notar, caríssimos fiéis, não por ele falar de alegria, pois a alegria, nós bem vimos Domingo passado, deve estar sempre presente em nossa alma, e por isso mesmo a antífona “Ad Deum qui laetificat juventutem meam”, “Ao Deus que alegra a minha juventudo” permanece, mesmo estando o salmo ausente! Todo o profundo sentido deste salmo, presente no início da Santa Missa, está no fato dele expressar a ardente esperança do salmista em retornar ao templo e ao tabernáculo de Deus para contemplar a Sua glória, confessando-O como seu Salvador: “Introibo ad altare Dei”, “Subirei ao altar de Deus”. Mas neste tempo sagrado da paixão, justamente Deus oculta Sua glória para que contemplemos as Suas dores redentoras, assim como nos diz Isaías: “Vere tu es Deus absconditus”, “Verdadeiramente tu és um Deus escondido” (Is. XLV, 15). A doxologia, isto é, o Glória-ao-Pai desaparece do Intróito e do Salmo do Lavabo, assim como dos responsórios do Ofício Divino. Eis o profundo luto da Esposa mística diante da conspiração dos fariseus, que em breve levará Nosso Senhor à redentora Morte de Cruz.

Não obstante, o luto da Igreja é misteriosamente mesclado por uma indizível alegria, pois a Cruz, o instrumento da Morte do Salvador, paradoxalmente é o sinal glorioso da Sua vitória e do Seu triunfo sobre o demônio, o mundo e o pecado, razão pela qual durante o Tempo da Paixão é louvada pelos hinos do Breviário e pelo Prefácio da Missa. “Crux ave, spes unica”, “Salve, ó Cruz, única esperança”. E isto é uma resposta muito adequada às acusações injustas que o venerável Rito Romano tradicional recebe de inúmeros teólogos modernistas, pois, segundo estes, a Liturgia de sempre da Igreja não tinha olhos senão para a Paixão de Nosso Senhor, não via senão o Sacrifício, esquecendo-se completamente da Ressurreição.

Estes teólogos pensam terem descoberto a alegria da Ressurreição, enquanto somos nós que cantamos o triunfo da Cruz sem esquecer o quanto este triunfo custou caro ao nosso Salvador: custou nada menos do que a Sua atroz, cruenta e dolorosíssima Paixão. O Tempo da Paixão quer nos apresentar de onde o Cristo triunfa: triunfa de uma Morte vergonhosa, pois não havia pena capital mais ignominiosa no tempo de Nosso Senhor do que ser condenado ao suplício da cruz. Tão vergonhosa era a crucificação que os primeiros cristãos não tiveram coragem de representar o Cristo crucificado: ou cravejavam a Cruz do altar de pedras preciosas ou representavam o Salvador com trajes de Rei, pois como diz o Hino das Vésperas, “Regnavit a ligno Deus”, “do madeiro da Cruz Deus reinou”. A Cruz, portanto, é o trono excelso de Deus, de onde Ele nos adquire com o Seu preciosíssimo Sangue, libertando-nos do cativeiro do demônio e adotando-nos como filhos e herdeiros do Seu Reino eterno.

Dito isso, devemos nos lembrar que, apesar de a Quaresma ter sido um tempo de penitência e mortificação, a finalidade dos esforços quaresmais não era outra senão reaver a verdadeira alegria, que é espiritual, pois o apego excessivo aos bens deste mundo tira de nossa alma a contemplação dos bens celestes. Por esta razão, no II domingo da Quaresma ouvimos o Evangelho da Transfiguração, e no IV o da multiplicação dos pães. No primeiro caso, nossa Santa Madre Igreja nos consola com a recordação do prêmio final da penitência que é a glória inefável do Céu; no segundo, a Igreja nos alenta com o prêmio já deste mundo, uma vez que a mortificação também serve para se recuperar o justo equilíbrio no uso dos bens sensíveis, conforme nos ensina Santo Tomás de Aquino.

No Tempo da Paixão, porém, não há outra alegria a ser considerada senão a do triunfo vindouro, isto é, o triunfo da Cruz. E enquanto aguardamos esperançosos o glorioso domingo de Páscoa, a Cruz do altar e as imagens veladas nos recordam não apenas o luto da Igreja durante a Paixão, mas também a nossa merecida desolação. Afinal, como disse Santo Agostinho, o pecado consiste numa “aversio a Deo”, “aversão a Deus” e numa “conversio ad creaturam”, “conversão à criatura”. A cada vez que pecamos nos apegamos desordenadamente a uma criatura e mesmo se não tivermos a intenção estamos necessariamente nos escondendo da face de Deus, estamos desprezando o nosso Criador porque preferimos a criatura. “Absconderunt se Adam et uxor ejus a facie Domini”, “Adão e sua mulher esconderam-se da face do Senhor” (Gen III, 8).

Se na Quaresma procuramos fazer mortificação para curar esta “conversão à criatura”, este apego excessivo e desordenado, no Tempo da Paixão devemos nos condoer porque Deus também esconde a Sua face de nós, nós que tivemos aversão por Ele e desprezamos o Seu amor infinito. Diz o Senhor no livro do Deuteronômio (XXXII, 20): “Abscondam faciem meam ab eis”, “Vou ocultar-lhes o meu rosto […] Pois são uma geração perversa, filhos sem lealdade.”

Com efeito, não há pior castigo para o pecador senão ser abandonado por Deus, que lhe permite continuar em seu estado miserável usufruindo de seus delírios. Nenhuma doença, nenhuma miséria material, nenhuma catástrofe natural é maior do que o pecador ter a liberdade para continuar pecando, pois se o filho pródigo não quer viver na casa de seu pai, então fará a experiência de viver entre os porcos sem perceber que vale menos do que eles. A cegueira espiritual é a pior consequência do pecado, porque se Deus continuasse a derramar graças abundantes aos pecadores obstinados, estes as desprezariam sem cessar, o que apenas aumentaria a sua culpa. Se Deus diminui as graças é por misericórdia; e se os mundanos aparentam serem inabaláveis na ostentação da sua falsa felicidade, isto não passa de um castigo, como nos adverte o Salmista: “Tradidit illos in desideria cordis eorum”, “Entregou-os aos desejos de seus corações” (Sl. LXXX, 13).

Donde um dos poucos meios para que a Divina Providência obtenha a conversão dos grandes pecadores é uma tragédia material ou física, pois somente sofrendo que o pecador se dá conta de que sua vida não passava de uma ilusão. “Vexatio intellectum dabit”, “A tribulação dará entendimento” (Is. XXVIII, 19). Quando vemos alguém sofrer, saibamos que o sofrimento sempre vem para o nosso bem e frequentemente para a nossa conversão, como nos ensina São Paulo: “Para aqueles que amam a Deus, todas as coisas cooperam para o bem” (Rom. VIII, 28).

Mas quando nos arrependemos e voltamos para Deus, é preciso nos condoermos por termos rejeitado durante tanto tempo a graça e dado as costas à face de Deus. No Tempo da Paixão, a cada vez que a Liturgia nos apresentar o Cristo sendo perseguido pelos judeus, devemos tomar para nós essa perfídia e nos colocar no lugar deles, como fez São Paulo ao dizer: “[…] eu sou o menor dos apóstolos, e não sou digno de ser chamado apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus.” (I Cor. XV, 9)

De fato, entre nós e os mundanos, ou entre nós e maus católicos, e mais ainda, entre nós e aqueles que pretendem destruir a Igreja por dentro, isto é, os modernistas, a exemplo de São Paulo devemos dizer: somos nós os menores, porque conhecemos a Deus mais do que os outros e um dia não O amamos; porque conhecemos a Deus melhor do que os outros e ainda não O amamos tanto quanto este conhecimento nos impele. Na verdade, não é de se espantar que nossa Santa Romana Igreja esteja infestada de inimigos de todo o tipo, se mesmo os seus amigos se encontram infiéis e tíbios. Como lamenta o profeta: “Inimici hominis domestici ejus”, “os inimigos do homem são os de sua própria casa” (Mq. VII, 6).

Procuremos, pois, nesta Santa Páscoa, sermos fiéis à vida de oração, especialmente à meditação da Paixão do Senhor, fiéis à prática das virtudes teologais e cardeais, fiéis à mortificação e às nossas boas resoluções, pois se o Cristo não ressuscitar em nós mediante a graça santificante, a Igreja não triunfará tão cedo de seus inimigos visíveis e invisíveis. Façamos nosso o clamor do Salmista: “Ne avertas faciem tuam a me”, “Não escondas de mim a vossa face” (Sl. XXVI, 9), para que possamos contemplar na eternidade aquela Sagrada Face que, na Transfiguração, “resplandeceu como o sol” (Mt. XVII, 2).


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